sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Balanço...

Faz tempo que estou querendo voltar a estas paragens, mudar o rumo da prosa, contar o que tem acontecido ou comentar o que não tem acontecido... mas, sei lá... mesmo achando que escrever é a "minha arte", alguma coisa sempre me segura... vai ver é a inércia, né?! Preciso reunir uma força superior para conseguir sair do lugar...

Agora, com a chegada de dezembro e suas festanças, tenho visto por aí tantos posts e textos dedicados ao tal balanço de fim de ano e às perspectivas e promessas para 2009, que pensei "Mas que ótima oportunidade!!!" (tão boa quanto todas as outras que tive nesses últimos quatro ou cinco meses, e deixei passar!). A verdade é que já passou da hora de sair dessa letargia.

Engraçado... desde o início do fotolog eu sempre me empenhei bastante para fazer posts interessantes, coesos e coerentes... teve uma época em que eu me divertia muito pensando no que eu iria postar, tinha milhões de idéias e posts novos todos os dias da semana. Deliberadamente, não postava nos finais de semana, só bem de vez em quando. Eu passava horas procurando a foto perfeita para o texto que eu queria postar, ou o texto que mais se adequasse à imagem escolhida... Adorava!!! Até hoje tenho o fotolog, mas já não atualizo com tanta freqüência, sei lá, acho que broxei um pouco, as pessoas sumiram, quase ninguém comenta... mas eu ainda gosto muito dele e, volta e meia, quando tenho algum insight, volto a dar as caras por lá.

Ontem bateu uma nostalgia e resolvi passear por todos aqueles posts... cada um é único e especial, foi bom relembrar a aventura que foi preparar alguns deles, e ver como muitos já não fazem tanto sentido e como uma meia dúzia resultou genial e ainda têm seu valor. Mas aí comecei a pensar... eles foram sempre muito pensados, burilados, mas, mesmo os mais espontâneos, não são corriqueiros. Lá não se vê coisas cotidianas, planos para o fim de semana ou relatos de como foi meu dia.

Aí parei para pensar... sou leitora regular de alguns blogs e os que mais me divertem são justamente esses que cumprem a função de "diário" mesmo, os que mostram o dia-a-dia, que se aproximam mais do rés-do-chão...

Então essa é a minha primeira resolução de Ano Novo: tornar o blog mais cotidiano, atualizar com freqüência, mostrar um pouco mais de mim... (não deve ser difícil, até porque não acontece muita coisa na minha vida, hehehe). A arte fica para o fotolog.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Narcisismo epistolar

(ou Afinal, o que menos importa é o destinatário)

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Olá, beibe!

Esta semana começou no ritmo do final da semana passada, totalmente trash. Só agora consigo vislumbrar uma luz no fim do túnel — provavelmente é o trem carregado de trabalho que sempre me atropela na segunda metade da semana.

Hoje é o início oficial da minha tpm e eu deveria começar hoje também a tomar minhas drogas anti-tpm, mas, em vez disso, me empanturrei de chocolate e coca-cola (e mais tarde certamente será café), tudo o que eu deveria evitar, porque são estopim para toda a crise que acompanha esse período.

Estou me sentindo como no poema do Drummond: sem mulher, sem discurso, sem carinho e, eu diria mais, sem dinheiro. Sinto que estou tomando um calote, pois as pessoas dos tccs ainda não me pagaram e simplesmente não respondem meus e-mails. Para além disso, estou cheia de perebas (olhos irritados, apesar do colírio, herpes no canto da boca por causa do tempo seco), reflexo de uma imunidade que está abaixo de zero. E agora, José?

Hoje a Juliana descobriu meu esconderijo secreto no HD dela e me despejou. Tive que fazer milagres para empacotar minha mudança na hora do almoço, e seguramente ainda ficaram pra trás uns bons 20 GB.

E como, depois da overdose da semana passada e do fim de semana, eu quero mais é distância de computador, vou aproveitando as noites para assistir a todas essas coisas (sim, pelo menos 90% do que eu tinha no computador da Juliana eram filmes). Ontem tinha planos de assistir a "Volver", mas acabei optando por "Desperate Housewives", que é mais curto, me faz rir e estava parado no meu aparelho de DVD havia uma era.

Como você pode ver, não está sendo uma semana fácil, mas me anima saber que ainda há espaço em mim para a poesia e um pouco de espirituosidade. E para não dar motivos para pensarem que eu só reclamo e que meus e-mails nada têm de interessante, aí vai uma canção que não tem nada a ver comigo especificamente (exceto pelos dois últimos versos da segunda estrofe), mas que me diverte bastante. Espero que goste.

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Mushaboom
Feist

Helping the kids out of their coats
But wait the babies haven't been born
Unpacking the bags and setting up
And planting lilacs and buttercups

But in the meantime I've got it hard
Second floor living without a yard
It may be years until the day
My dreams will match up with my pay

Old dirt road
Knee deep snow
Watching the fire as we grow old

I got a man to stick it out
And make a home from a rented house
And we'll collect the moments one by one
I guess that's how the future's done

How many acres how much light
Tucked in the woods and out of sight
Talk to the neighbours and tip my cap
On a little road barely on the map

Old dirt road
Knee deep snow
Watching the fire as we grow old
Old dirt road
Rambling rose
Watching the fire as we grow well I'm sold

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É isso. Agora é a sua vez. Talk to me!

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segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Com perdão do trocadilho...

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... não há nada mais chato em publicidade do que texto legal.

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quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Ode à TPM

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(Mais conhecido como...)

A morte absoluta

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão — felizes! — num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
— Sem deixar sequer esse nome.

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Manuel Bandeira

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quinta-feira, 2 de outubro de 2008

I am Forrest, Forrest Gump!

Volta e meia, nessa minha vida besta pacata, passo por situações que me fazem sentir como uma personagem de algum livro ou filme. Não, não é bem isso, não me expressei bem. Não é que eu viva situações que me levam a pensar "hum... isso daria um filme/livro", não é isso. É uma coisa de momento. Sabe aquela expressão "tenho meus momentos"? Pois é... volta e meia eu tenho meus momentos cinematográficos e literários (às vezes os dois ao mesmo tempo, como você pode ver aqui).

Pois bem, ontem à noite eu estava em casa, meio sem sono, meio com preguiça de ir dormir (sim, eu tenho preguiça de ir dormir), meio pensando que eu já deveria estar dormindo, porque estava tarde e hoje ainda era dia de branco, quando minha preguiça foi interrompida por um clássico barulho de colisão de automóveis (batida de carro, para os leigos). Não foi nada muito estrondoso, não teve grandes freadas ou derrapagens (apesar do asfalto molhado); pelo barulho, eu diria que foi uma batida comedida porém vigorosa.

Fiquei feliz por ter arrumado a porta da sacada. Antes eu ia para a janela, mas não dava para ver nada além do muro do Peixinho e o semáforo da esquina; agora, da sacada, eu consegui ver um pedacinho de um carro atravessado no meio do cruzamento, parecia uma Kombi. O outro, um Peugeot 206 preto, na minha imaginação fértil (Celta, também preto, na cabeça da minha irmã, que nem estava acordada — nem acordou — na hora da batida), eu não vi, mas a Kombi deve tê-lo acertado em cheio do lado, ou lateral dianteira com lateral dianteira, porque foi uma pancada definitiva, sem cascalhos de ruído depois.

Como diria Mário de Andrade, "fez-se um silêncio de morte". Mas ninguém morreu, e acho que nem se machucou, pois, uns poucos segundos depois, o silêncio foi dissipado por uma menina totalmente descompensada se esgoelando no meio da noite, "Olha o que você fez no meu caaarroo!!! Você tá bêbado, seu desgraçadoo!!! Olha o que você fez no meu carrooooo!!!!". Ele devia estar mesmo bêbado, pois só dizia "Calma, não aconteceu nada, não fez nada no teu carro". Uma amiga veio logo em seguida, "Calma, Paula! Calma!". "Olha o que esse desgraçado fez no meu carro! Eu não vou ficar calma!". "Calma, Paula!". Mas a Paula não estava muito interessada em se acalmar, e continuou a gritaria.

Eu, mais que rápido, passei a mão no telefone e liguei para o 190 — e descobri que para o 190 o celular liga mesmo estando com o teclado bloqueado; depois soube que se você discar 911 ele te manda ligar no 190 (como se funcionasse!), não não fui eu que liguei, foi minha outra irmã — enfim, liguei para o 190 e acho que esse é o número de vezes que você tem que tentar antes de ser atendido. Como eu não estava com muita paciência, tentei só umas seis vezes e, como não deu certo, liguei pro 193 (Siate), mesmo achando que não tinha ninguém machucado (bom, não pelo acidente, mas como a Paula ainda estava descontrolada...), vai que eles têm uma linha direta com o pessoal do 190, né? Mas a moça disse que, como era "colisão de automóveis", eu tinha que ligar no 154, que é o Departamento de Trânsito. Lá fui eu acordar a mocinha do trânsito, ela não gostou muito e desligou na minha cara, só que como ainda não tinha ninguém conseguindo segurar a Paula para ela não matar o bebum da Kombi, liguei de novo (não sei de onde eu tiro tanta determinação às vezes, fico de cara!).

Esse foi meu momento Forrest Gump (já estava quase esquecendo que era esse o mote do post). É claro que essa referência só vai fazer algum sentido para alguém que tenha visto o filme umas 762 vezes... como eu! Engraçado... meus momentos cinematográficos são sempre sobre seqüências coadjuvantes, peripécias desimportantes, grandes feitos desprezados... com Amélie também foi assim...

É, minha vida não tem muitos momentos "que dariam um filme", mas um ou outro sempre acaba rendendo um post.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Personagens cotidianos

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O Lucas é um menino lindo. Mesmo com 19 anos, um rapaz grande, forte e loiro, o que eu vejo quando olho pra ele é uma criança, um meninão. Não que ele seja um retardado com idade mental limitada. Ele simplesmente tem o jeito doce de uma criança.

O Lucas luta boxe e volta e meia chega todo estropiado, cheio de hematomas e machucados, mas com a maior cara de feliz. Enquanto o resto do pessoal combina baladas e botecos para depois do expediente, ele só pensa em ir treinar. Quem o vê com sua mochila e suas luvas, já o imagina um troglodita, mas ele é de uma delicadeza sem tamanho.

Tímido ou simplesmente muito educado, o Lucas não fala muito, e quando fala, fala baixo, fala manso, parece que está sempre com medo de incomodar. Todos os dias, depois do almoço (às vezes de manhã também, logo que chega ao serviço), o Lucas vai até sua mesa, coloca pasta de dente na escova e sai desfilando com a escova na boca, em direção ao banheiro.

O Lucas fala "dois outdoores", e sempre tenta concordar os plurais corretamente. Ele não dá a mínima para o acordo tácito dentro da agência de economizar papel e sempre imprime os materiais que finaliza, porque sabe que eu não gosto de revisar na tela. Ou porque não tem preguiça de ir até a impressora buscar a print, como os outros.

Que bom seria se todos fossem um pouco como o Lucas.

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segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Um senhor muito velho com umas asas enormes

Gabriel García Márquez (1968)

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Ao terceiro dia de chuva haviam matado tantos caranguejos dentro da casa que Pelayo teve que atravessar seu pátio alagado para atirá-los ao mar, pois o menino recém-nascido passara a noite com febre e se pensava que era por causa da peste. O mundo estava triste desde terça-feira. O céu e o mar eram uma só coisa cinza, e as areias da praia, que em março fulguravam como poeira de luz, converteram-se num caldo de lodo e mariscos podres. A luz era tão mansa ao meio-dia, quando Pelayo voltava a casa depois de haver jogado os caranguejos, que lhe deu trabalho ver o que se mexia e se queixava no fundo do pátio. Teve que se aproximar muito para descobrir que era um velho, que estava caído de boca para baixo no lodaçal, e que apesar de seus grandes esforços não podia levantar-se, porque o impediam suas enormes asas.

Assustado com aquele pesadelo, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher, que estava pondo compressas no menino doente, e a levou até o fundo do pátio. Os dois observaram o corpo caído com um calado estupor. Estava vestido como um trapeiro. Restavam-lhe apenas uns fiapos descorados na cabeça pelada e muito poucos dentes na boca, e sua lastimável condição de bisavô ensopado e havia desprovido de toda grandeza. Suas asas de grande galináceo, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda se refizeram logo do assombro e acabaram por achá-lo familiar. Então se atreveram a falar-lhe, e ele lhes respondeu em um dialeto incompreensível mas com uma boa voz de marinheiro. Foi assim que desprezaram o inconveniente das asas, e concluíram com muito bom juízo que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro abatido pelo temporal. Apesar disso, chamaram para vê-lo ma vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela bastou um só olhar para tirá-los do erro.

— É um anjo — disse-lhes. — Mão tenho dúvida de que vinha buscar o menino, mas o coitado está tão velho que a chuva o derrubou.

No dia seguinte todo mundo sabia que em casa de Pelayo tinham aprisionado um anjo de carne e osso. Contra o julgamento da sábia vizinha, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não tinham tido coragem para matá-lo a pauladas. Pelayo o esteve vigiando toda a tarde da cozinha, armado com seu garrote de meirinho, e antes de deitar-se arrastou-o do lodaçal e o encerrou com as galinhas no galinheiro alambrado. À meia-noite, quando terminou a chuva, Pelayo e Elisenda continuavam matando caranguejos. Pouco depois o menino acordou sem febre e com vontade de comer. Então se sentiram magnânimos e decidiram pôr o anjo em uma balsa com água potável e provisões para três dias, e abandoná-lo à sua sorte em alto-mar. Mas quando saíram ao pátio às primeiras luzes da manhã, encontraram toda a vizinhança diante do galinheiro, brincando com o anjo sem a menor devoção e atirando-lhe coisas para comer pelos buracos dos alambrados, como se não fosse uma criatura sobrenatural mas um animal de circo.

O Padre Gonzaga chegou antes das sete, alarmado pelo exagero da notícia. A esta hora já haviam acudido curiosos menos frívolos que os do amanhecer, e haviam feito todo o tipo de conjeturas sobre o futuro do cativo. Os mais simples pensavam que seria nomeado prefeito do mundo. Outros, de espírito mais austero, supunham que seria promovido a general de cinco estrelas, para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que fosse conservado como reprodutor, para implantar na terra uma estirpe de homens alados e sábios, que tomassem conta do universo. Mas o Padre Gonzaga, antes de ser cura, tinha sido forte lenhador. Junto aos alambrados, repassou num instante seu catecismo, e mesmo assim pediu que lhe abrissem a porta para examinar de perto aquele varão lastimável que mais parecia uma enorme galinha decrépita entre as galinhas distraídas. Estava atirado a um canto, secando ao sol as asas estendidas, entre as cascas de frutas e os restos do café que lhe atiraram os madrugadores. Alheio às impertinências do mundo, apenas levantou seus olhos de antiquário e murmurou algo em seu dialeto quando o Padre Gonzaga entrou no galinheiro e lhe deu bom-dia em latim. O pároco teve a primeira suspeita de sua impostura ao comprovar que não entendia a língua de Deus nem sabia saudar aos seus ministros. Logo observou que visto de perto ficava muito humano: tinha um insuportável cheiro de intempérie, o avesso das asas semeado de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada de sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos. Então abandonou o galinheiro, e com um rápido sermão preveniu os curiosos contra os riscos da ingenuidade. Recordou-lhes que o demônio tinha o mau costume de recorrer a artifícios de carnaval para confundir os incautos. Argumentou que se as asas não eram o elemento essencial para determinar as diferenças entre um gavião e um aeroplano, muito menos podiam sê-lo para reconhecer os anjos. Entretanto, prometeu escrever uma carta a seu bispo, para que este escrevesse outra a seu primaz e para que este escrevesse outra ao Sumo Pontífice, de modo que o veredicto final viesse dos tribunais mais altos.

Sua prudência caiu em corações estéreis. A notícia do anjo cativo divulgou-se com tanta rapidez, que ao cabo de poucas horas havia no pátio um alvoroço de mercado, e tiveram que usar a tropa com baioneta para dispersar o tumulto que já estava a ponto de derrubar a casa. Elisenda, com a coluna torcida de tanto torcer lixo de feira, teve então a boa idéia de murar o pátio e cobrar cinco centavos pela entrada para ver o anjo.

Vieram curiosos até da Martinica. Veio uma feira ambulante com um acrobata voador, que passou zumbindo várias vezes por cima da multidão, e ninguém lhe fez caso, porque suas asas não eram de anjo mas de morcego sideral. Vieram em busca de saúde os enfermos mais desgraçados do Caribe: uma pobre mulher que desde menina estava contando as batidas do seu coração e já não lhe bastavam os números, um jamaicano que não podia dormir porque o atormentava o ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite para desfazer as coisas que fizera acordado, e muitos outros de menor gravidade. No meio daquela desordem de naufrágio que fazia tremer a terra, Pelayo e Elisenda estavam felizes de cansaço, porque em menos de uma semana empanturravam de dinheiro os quartos, e apesar disso a fila de peregrinos que esperava vez para entrar chegava ao outro lado do horizonte.

O anjo era o único que não participava do seu próprio acontecimento. Gastava o tempo em buscar cômodo no ninho emprestado, aturdido pelo calor de inferno dos lampiões e das velas de promessa que encostavam nos alambrados. No princípio, trataram de que comesse cristais de cânfora , que, de acordo com a sabedoria da sábia vizinha, era o alimento específico dos anjos. Mas ele os desprezava, como desprezou sem provar os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por anjo ou por velho que acabou comendo nada mais que papinhas de berinjela. Sua única virtude sobrenatural parecia ser a paciência. Principalmente nos primeiros tempos, quando as galinhas o bicavam em busca dos parasitas estelares que proliferavam nas suas asas, e os entrevados arrancavam-lhe penas para tocar com elas seus defeitos, e até os mais piedosos atiravam-lhe pedras, forçando a que se levantasse para vê-lo de corpo inteiro. A única vez que conseguiram alterá-lo foi quando lhe queimaram as costas com um ferro de marcar novilhos, porque estava há tantas horas imóvel que o acreditaram morto. Acordou sobressaltado dizendo disparates em língua hermética e com os olhos em lágrimas, e deu um par de asadas que provocaram um redemoinho de esterco de galinheiro e poeira suja, e um temporal de pânico que não parecia deste mundo. Embora muitos acreditassem que sua reação não fora de raiva e sim de dor, desde aí trataram de não molestá-lo, porque a maioria entendeu que sua passividade não era a de um herói no uso de boa aposentadoria mas a de um cataclismo em repouso.

O Padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto esperava um julgamento final sobre a natureza do cativo. Mas o correio de Roma perdera a noção da urgência. Gastavam o tempo em averiguar se o réu convicto tinha umbigo, se seu dialeto tinha algo que ver com o aramaico, se podia caber muitas vezes na ponta de um alfinete, ou se não seria simplesmente um norueguês com asas. Aquelas cartas de prudência teriam ido e vindo até o fim dos séculos se um acontecimento providencial não tivesse posto fim às atribulações do pároco.

Aconteceu que por esses dias, entre muitas outras atrações das feiras errantes do Caribe, levaram ao povoado o triste espetáculo da mulher que se convertera em aranha por desobedecer a seus pais. A entrada para vê-la não só custava menos que a entrada para ver o anjo, mas até permitiam fazer-lhe quaisquer perguntas sobre sia absurda condição, e examiná-la pelo direito e pelo avesso, de modo que ninguém pusesse em dúvida a verdade do horror. Era uma tarântula espantosa do tamanho de um carneiro e com a cabeça de uma donzela triste. O mais triste, entretanto, não era sua figura absurda, mas a sincera aflição com que contava os pormenores de sua desgraça; ainda menina fugira da casa dos pais para ir a um baile, e quando voltava pelo bosque depois de haver dançado sem licença toda a noite, um trovão pavoroso abriu o céu em duas metades, e por aquela greta saiu o relâmpago de enxofre que a converteu em aranha. Seu único alimento eram as bolinhas de carne moída que as almas caridosas quisessem pôr-lhe na boca. Semelhante espetáculo, carregado de tanta verdade humana e de tão temível escarmento, tinha que derrotar mesmo sem querer o de um anjo altivo que mal se dignava a olhar os mortais. Além disso, os escassos milagres que se atribuíam ao anjo revelavam uma certa desordem mental, como o do cego que não recuperou a visão mas lhe nasceram três dentes novos, e o do paralítico que não pôde andar mas esteve a ponto de ganhar na loteria, e o do leproso em quem nasceram girassóis nas feridas. Aqueles milagres de consolação, que mais pareciam brincadeiras, já haviam abalado a reputação do anjo quando a mulher convertida em aranha acabou por aniquilá-la. Foi assim que o Padre Gonzaga se curou para sempre da insônia, e o pátio de Pelayo voltou a ficar tão solitário como nos tempos em que choveu três dias e os caranguejos caminhavam pelos quartos.

Os donos da casa não tiveram nada a lamentar. Com o dinheiro arrecadado construíram uma mansão de dois andares, com sacadas e jardins, com escadas bem altas para que os caranguejos do inverno não entrassem, e com barras de ferro nas janelas para evitar que entrassem os anjos. Pelayo além disso instalou uma criação de coelhos muito perto do povoado e renunciou para sempre a seu mau emprego de meirinho, e Elisenda comprou umas sandálias acetinadas de saltos altos e muitos vestidos de seda furta-cor, dos que usavam as senhoras mais invejadas nos domingos daqueles tempos. O galinheiro foi o único que não mereceu atenção. Se alguma vez o lavaram com creolina e queimaram gotas de mirra no seu interior, não foi para prestar honras ao anjo, mas para conjurar a pestilência de lixeira que já andava como um fantasma por todas as partes e estava tornando velha a casa nova. A princípio, quando o menino aprendeu a andar, cuidaram para que não ficasse muito perto do galinheiro. Mas logo foram esquecendo o medo e acostumando-se ao mau cheiro; antes que o menino mudasse os dentes, já fora brincar dentro do galinheiro, cujos alambrados podres caíam aos pedaços. O anjo não foi menos displicente com ele que com o resto dos mortais, mas suportava as maldades mais engenhosas com uma mansidão de cão sem ilusões. Ambos contraíram catapora ao mesmo tempo. O médico que atendeu ao menino não resistiu à tentação de auscultar o anjo, e encontrou nele tantos sopros no coração e tantos ruídos nos rins que não lhe pareceu possível que estivesse vivo. O que mais o assombrou, entretanto, foi a lógica de suas asas. Ficavam tão naturais naquele organismo completamente humano, que não se podia entender por que não as tinham também os outros homens.

Quando o menino foi à escola, fazia muito tempo que o sol e a chuva haviam destruído o galinheiro. O anjo andava se arrastando para cá e para lá como um moribundo sem dono. Tiravam-no a vassouradas de um dormitório e um momento depois o encontravam na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo, que chegaram a pensar que se desdobrava, que se repetia a si mesmo por toda a casa, e a exasperada Elisenda gritava fora dos eixos que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos. Mal podia comer, seus olhos de antiquário tornaram-se tão turvos que andava tropeçando nas colunas, e já não lhe restavam senão os canudos pelados das últimas penas. Pelayo jogou sobre ele uma manta e lhe fez a caridade de deixá-lo dormir no alpendre, e só então perceberam que passara a noite com febre, delirando em engrolados de norueguês velho. Foi essa uma das poucas vezes que se assustaram, porque pensavam que ia morrer, e nem sequer a sábia vizinha pudera dizer-lhes o que se fazia com os anjos mortos.

Entretanto, não só sobreviveu a seu pior inverno, como pareceu melhor com os primeiros sóis. Ficou imóvel muitos dias no canto mais afastado do pátio, onde ninguém o visse, e em princípios de dezembro começaram a nascer-lhe nas asas umas penas grandes e duras, penas de grande pássaro velho, que mais pareciam um novo percalço da decrepitude. Mas ele devia conhecer a razão dessas mudanças, porque tomava muito cuidado para que ninguém notasse, e para que ninguém ouvisse as canções de marinheiro que às vezes cantava sob as estrelas. Uma manhã, Elisenda estava cortando fatias de cebola para o almoço, quando um vento que parecia de alto-mar entrou pela cozinha. Foi então à janela e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas de vôo. Eram tão torpes, que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve a ponto de destruir o alpendre com aquelas asadas indignas que escorregavam na luz e não encontravam apoio no ar. Mas conseguiu ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de descanso, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando-se de qualquer jeito com um precário esvoaçar de abutre senil. Continuou vendo-o até acabar de cortar a cebola, e até quando já não era possível que o pudesse ver, porque então não era mais um estorvo em sua vida, mas um ponto imaginário no horizonte do mar.

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quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Chove lá fora e aqui...

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Anteontem o dia amanheceu engraçado. Quando fui me deitar, na noite anterior, estava trovejando, aqueles trovões majestosos, distantes e longos. Pensei "eita, vai chover". De manhã fui acordada pelo Pedro arranhando a minha porta. Apesar de ter uma birra inexplicável com porta fechada — ele não pode ver uma porta fechada que já vai arranhar pedindo para abrir, às vezes ele fica parado no meio da porta, para a gente não poder fechar; nesse ponto acho que ele é igual a mim, gosta de ter opções —, ele não é do tipo que acorda cedo para passar por uma porta. Normalmente ele só levanta quando o café já está na mesa.

Tentei ignorá-lo, mas ele arranhou insistentemente e eu não tive outra escolha senão me levantar e abrir a porta. Foi o tempo de eu retomar minha posição debaixo das cobertas e ele pulou na cama, bem no meu travesseiro, por pouco não aterrissou em cima da minha cabeça. Pediu para entrar debaixo da coberta. "Mas que diabo tá acontecendo com esse cachorro? Nem tá frio!". Cinco minutos depois — CABRUM! (os trovões tinham voltado, ainda majestosos, longos, mas incrivelmente próximos) —, lá vai o Pedro pra fora da cama. Ainda chamei "Pedro! Pedro! Volta aqui! Eu te protejo!", mas ele já estava arranhando a porta da Juliana. Ela abriu e escorraçou o pobre de lá, mas quando viu o desespero do coitado, quase arrombando a porta, abriu pra ele entrar. Um tempinho depois, lá está o Pedro atravessando a casa em direção ao quarto da Rosane (que fica com a porta sempre aberta). A cada novo trovão, ele mudava de lugar. Estava completamente apavorado, tadinho.

Mas o bizarro de tudo foi quando eu acordei de verdade e vi o sol se derramando preguiçosamente pela sala e pelo sofá. "Que esquisito!". Olhei pela janela da Rosane, o céu estava azul e límpido, no entando — CABRUM! — os trovões continuavam a reboar. "Mas que diabos?!". Fui até a cozinha olhar para o outro lado do mundo, e lá estavam, ainda pouco visíveis no meu estreito horizonte urbano, os raios e as nuvens carregadas. Terminei de tomar meu café e lá fora caía uma chuvinha, mas nem por isso os trovões deram trégua. Fui trabalhar e antes de ter me acomodado em minha mesa, o céu já estava despencando lá fora.

Quando abri a porta de casa, na hora do almoço, percebi que a desgraça estava feita. Minha poltrona estava pra fora do quarto. Só isso já me fez gelar. Entrei e minha vontade era sair correndo na direção oposta, possivelmente gritando. Meu quarto mais uma vez foi atingido pela enchente, que, pelo estrago, foi pior que as anteriores. Saldo: livros, fotos, sapatos, ventilador, tudo molhado, o armário dando sinais de que a ferrugem tá chegando e uma zona do baralho!

Fui cumprimentar o Pedro, estava com as patas e a barriga molhadas. "Ele andou a manhã inteira ná água, atrás de mim, enquanto socorria seu quarto" a Rosane falou. Os trovões não pararam, e ele passou o dia à base de uma fórmula plus do remédio homeopático que ele toma, para se acalmar.

À noite, eu dei uma arrumada na bagunça do meu quarto, liguei os ventiladores, para ver se alguma coisa secava, mesmo com toda a umidade ainda no ar, afinal, ainda estava chovendo. Volta e meia via o Pedro passando, mudando de esconderijo; não quis tomar café, não quis bolacha, estava morrendo de medo. Quando fui tomar banho, lá estava ele, sozinho e encolhido no banheiro escuro. Ficou lá comigo e, num trovão mais forte — "Calma, filho!, é só a chuva! Pedro, ond... PEDRO, CÊ TÁ MALUCO???" —, se enfiou debaixo do chuveiro!

Ele odeia água, morre de medo, detesta tomar banho e não entra no banheiro de jeito nenhum, e se enfiou debaixo do chuveiro porque estava com medo do trovão! Realmente, ele está precisando aumentar a dosagem do remédio!

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quarta-feira, 16 de julho de 2008

Mais um dia, menos um dia...

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Estou vindo de uma semana exaustiva de sete dias úteis (emendada nesta de cinco, e só cinco se tudo correr conforme meus planos).
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Sim, trabalhei sábado e domingo seguidos (e por que eu estou escrevendo isso aqui, se eu já falei pro Jorge e ele é a única pessoa que lê esta bagaça? Hum... sei lá, utopia do leitor tímido talvez... quem sabe desta vez ele, o leitor tímido, comenta...).
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Segunda-feira, tinha a sensação de que era quarta. Terça, jurava que era sexta. Hoje estou aqui amargando a realidade de que ainda tenho que camelar mais três dias (contando com este, claro) antes de poder me refestelar em minha cama até o corpo dizer chega (tá, outra utopia, afinal sábado tenho que aproveitar a manhã para ir atrás de alguém que tire o Elvis de seu estado comatoso).
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Isso se no sábado eu não tiver que levantar na madruga boladona para ingressar na expedição "em busca da sobrinha desconhecida". Mas isso são outros quinhentos.
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quinta-feira, 10 de julho de 2008

Money & Freedom

We've always heard that well-known proverb according which money cannot buy happiness. Ok. From a psychological point of view, that's completely correct. People should feel comfortable with themselves, seek for self-knowledge, find satisfaction in being alive and healthy, appreciate the sunlight and the perfume of the flowers.
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But what about freedom?
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As far as I'm concerned, money doesn't buy for criminals freedom from jail (well, sometimes it does, particularly here in Brazil), however each day more it turns absolutely necessary to assure all those everyday liberties, as do what you wish and go where you want.
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It happens not only because the cost of life is higher, because is no longer enough to have money just to pay the bills or because of the increasing unemployment. Nowadays, in this capitalist society, it's all about financial resources.
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Money can even not buy happiness, forgiveness or freedom, but it, undoubtedly, guarantees one of the most desirable liberties: the liberty of choice.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Cadê o lirismo?

Retentor
Alternador
Dínamo
Bateria
Prestação
Gasolina
Cinto de Segurança
Trânsito
Buzina (\o/)
Estacionamento
Fatura (atrasada)
...
Tenho visto que há muito mais poesia em caminhar contra o vento, sem lenço nem documento.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Se quer saber...

Eu sei que tá todo mundo falando por aí que ele morreu, mas eu tô aqui para mostrar que isso não é bem verdade!